No início havia God . Dr Godwuin, na verdade. E God criou Bella. O criador e […]
15/05/2024
No início havia God . Dr Godwuin, na verdade.
E God criou Bella.
O criador e sua criação; o cientista arrojado, amoral e sua curiosidade infinita; e Bella, sua mais perfeita experiência .
Esse filme pouco comum levou-me a várias considerações, e sugiro a quem ainda não o assistiu, que assista. Vale a pena.
Como fã de cinema estava muito curiosa , só não sabia que minha vivência como ginecologista e sexóloga agregaria mais ingredientes à experiência como um todo.
O filme é uma grande viagem, uma mistura de Frankenstein, que nos acena desde as primeiras imagens com Alice no País das Maravilhas.
O tom de fábula é reforçado pelas cores vibrantes, pelos detalhes vistos quase por um binóculo que deixa o entorno meio borrado e pelo absurdo que brota a cada cena. Gostei bastante do roteiro e do elenco e a atuação primorosa de Emma Stone ,que levou inclusive seu segundo Oscar por esse papel, é um grande diferencial.
O desenvolvimento físico e intelectual de Bella, sua personagem, é contundente, minucioso e emocionante. God implanta um cérebro infantil em uma mulher bela e adulta, que morrera tragicamente. Sua expressão facial, a forma de falar e se movimentar, o assombro e a inocência que só a infância possui, vão nos cativando. E , à medida que essa criança em corpo adulto se desenvolve, a sexualidade desponta crua e explosiva, sem limites ou culpas ou julgamentos. Seu corpo permite-se experimentar o prazer , sozinha ou não, discreta ou explicitamente,o que provocou algumas críticas ao filme. Não achei apelativo, de forma alguma. O interesse pelo sexo aparece naturalmente, como deveria ser! Sua vivência livre pode nos chocar, pois trazemos nossas próprias crenças culturais, religiosas e pessoais. Nessa evolução, aparecem dois outros personagens. O também cientista, Max , logo alçado de assistente de God a noivo improvável e respeitoso, e Duncan, o advogado espertalhão que advinha em Bella essa explosão da sexualidade. Duncan leva Bella, com o consentimento de God, para uma longa viagem. Ela quer conhecer o mundo, ver e desfrutar de si e de tudo. Assim, vemos o corpo subjugar a mente infantil e oferecer a essa mulher sem passado, sem herança, livre de culpa, uma vivência talvez irresponsável mas plena de sua sexualidade. Prazer indissociável do riso e da diversão.
Esse é um outro destaque: um senso de humor por vezes inesperado, fora de contexto, mas essencial para imprimir ainda mais personalidade ao filme. À medida que Bella evolui, a música também cresce, fica mais elaborada, mais coesa sem, no entanto, perder sua estranheza. Os cenários ganham mais definição e nitidez enquanto Bella amadurece .
Ela conhece a tristeza e o tédio e decide abandonar Duncan, que não consegue lidar mais com essa mulher livre, impetuosa e questionadora, cada dia mais dona de si.
Sua curiosidade insaciável a leva a experiências diversas e ,lentamente, ela começa a desenvolver uma forma de senso crítico, um desconforto.
A notícia de que God está doente leva Bella à casa de sua infância. Assim ela retorna para God, sua figura paterna, e para seu noivo romântico e cuidador, totalmente oposto ao amante com quem fugiu para ser livre e conhecer o mundo. E assim ela descobre sua história e sua origem inusual e, a partir desse momento, Bella deixa de ser criatura para se assumir criadora. Como God.
Pobres Criaturas não deixa de ser uma jornada bem sucedida de autoconhecimento e de empoderamento, beneficiada pela ausência de preconceitos e pela intenção de guiar-se pelas próprias verdades e desejos. Assistimos ,surpresos, essa metáfora da passagem da infância para a vida adulta torcendo por Bella, sorrindo com ela e perdoando até mesmo suas maldades.
Sobre a autora
Luciene Miranda Barduco, médica formada pela USP, continua apaixonada por sua especialidade, a ginecologia e obstetrícia. Depois descobriu a mastologia e, recentemente, a sexologia. Médica, esposa, mãe da Mariana e gosta muito de tudo isso!
lulubarduco@gmail.com